Buenas, pessoal. A nossa Feira do Livro está chegando e trago um conto do Luiz Nicanor, nosso patrono desse ano. Encham uma xícara de café e aproveitem. Um abraço!
F. Essy
Pois assim como os computadores se tornaram utilidades domésticas, daqui a um simples passo, outro bem de consumo logo também se tornará, mas talvez, como sempre, só uma pequena minoria bem aquinhoada terá ao alcance de suas mãos ávidas e nunca satisfeitas, será o clone.
Digamos você ser um destes privilegiados, daqueles que têm o poder na mão e a varinha mágica de realizar todos os seus desejos, independente de todo o caudal de problemas sociais a ocorrerem a sua volta. Você, obviamente, sabe usar com perícia as mordaças da consciência de tal modo que sempre terá um sono tranquilo, um despertar róseo e um dia maravilhoso, imune a gritos e a ranger de dentes. Qual culpa cabe a você onde uma multidão de lascados não sabe distinguir uma alface de um repolho? Problema dela, é óbvio...
Mas você é um dos privilegiados com o poder de encomendar um clone. Aí você começa, pelo menos no princípio, quando ainda não está bem familiarizado com a nova situação, a matutar nas vantagens que lhe serão trazidas por possuir em seu poder e a seu mando uma cópia exata de si mesmo.
O primeiro problema a lhe saltar aos olhos é o de como manter uma cópia igual a você perambulando por aí.
Este galho até não é dos piores, você é rico, apenas empresta um dos seus inúmeros apartamentos ao clone e ensina a ele como usar disfarces: óculos escuros e barba postiça, por exemplo. Isto se você não usa barba e óculos escuros! Neste caso obrigue o clone a andar sempre bem barbeado! Se você exibe uma respeitável careca reluzente, o clone poderá usar uma peruca a Beatles.
Surgirão, óbvio, outros entraves, como a carteira de identidade do clone, o título de eleitor (e já lhe passa pela cabeça uma possível complicação na hora de votar: e se lhe acusarem de haver votado duas vezes no mesmo candidato, ou, o que é pior ainda, ter votado duas vezes, mas em candidatos diferentes?), carteira de trabalho... O melhor mesmo é tirar cópias de seus próprios documentos e explicar bem ao clone em como usá-los, ou, melhor ainda, como não usá-los...
Mas não só de problemas viverá você nesta nova situação... Você começa também a matutar nas vantagens de possuir uma cópia!
Um dia você levanta de saco cheio porque terá que aturar reuniões maçantes e papos furados... Tá tudo resolvido! Mande o clone. Afinal de contas, qual a serventia dele?
No outro dia você levantou de porre, com a sensação de haver engolido um cabo de guarda-chuva preto; muito bem, mande o clone... Teria substituto melhor?
Você está assoberbado de compromissos, tem que estar em vários locais ao mesmo tempo, são situações de lucros e outras vantagens... divida os pepinos com o clone. Claro, você será justo o suficiente para ficar com os pepinos menores e deixar todos os grandes, grossos e rugosos ao clone! Afinal de contas você é justo até com sua cópia...
E aí um dia chove na sua horta! Você, nesta correria toda atrás do vil metal, já nem sabe a quantas anda a sua vida de marido sofrível com esposa chata, e de repente lhe passa bem debaixo das fuças uma daquelas gatonas cujas protuberâncias de seios e de nádegas ondulam voluptuosamente ao compasso de molejos e suspensões capazes de alterar até a posição anatômica de seus olhos já esquecidos da existência do belo sexo. Gingando por controle remoto no mesmo compasso daquela Vênus fugida do Olimpo, você a segue e passa-lhe a sua irresistível lábia. E... mas como você é mesmo um galã de Holliwood!, a deusa topa qualquer parada! Também não é todo o dia que um garanhão dos quatro costados como você se dignar a baixar os olhos a alguma pobre moça!
Mas aí a olimpiana lhe confessa estar perdidamente apaixonada pela sua flácida barrigona cheia de chope e por sua beleza já um pouco enferrujada, mas que existe um pequeno senão! O namorado dela é um lutador de artes marciais e muito ciumento. Você sente um aperto no ânus capaz de cortar um alfinete ao meio, mas tem o poder do raciocínio rápido. Rebate presto ser casado com uma mocreia também ciumenta e louca de aparecer na mídia e nos jornais como uma degoladora de pênis, e passa o dia inteiro com uma faca de cozinha na mão a treinar cortando cenouras e pepinos.
Mas tudo isso é café pequeno e você pensa logo no clone e na maneira de se sair bem da empreitada. Perder uma gata daquelas seria o mesmo que derrubar todas as outras façanhas de sua vida e dali adiante viver com a sensação de um derrotado. Se você não ganhar esta, com qual irá empatar no futuro?
E tudo dá certo e você está em franco caso com a olimpiana, no maior dos segredos, até um dia onde você está calmamente sentado em um restaurante fino esperando o seu almoço e um brutamontes lhe gruda pelo colarinho e urra na sua cara:
- O meu detetive particular descobriu que a minha noiva está me traindo com você, seu aprendiz de pilantra! Vou agora mesmo torcer o seu miserável pescoço.
É um terrível vexame você ser arrancado assim de sua cadeira por um molosso daqueles e chamar a atenção de todo mundo, até dos garçons que já correram ao telefone para chamar a polícia. Mas você não perde a fleugma:
- Desculpe, cavalheiro, mas deve haver algum engano. Não me recordo de ter sido apresentado ao senhor e o motivo destas liberdades comigo...
- Deixe de conversa mole, seu patife! O meu detetive...
- Detetive? Nem imagino do que o senhor está falando!
- Ontem foi minha noite de luta, até de madrugada, – diz o Sansão –, e você passou a noite na cama, no bem bom, com a minha noiva!
- Em primeiro lugar devo lhe dizer que vou lhe processar pelo vexame causado pelo senhor contra a minha reputação. Sou um homem de respeito e posso provar. Sempre saio do serviço e vou direto para casa. Minha esposa, dona Marfisa, é muito ciumenta e não admite atraso nem na hora do jantar. Por que não liga para ela?
Ele tem um sorriso cínico e cruel e aceita o seu celular junto com o número do telefone fixo de sua casa. Percebe o quanto sua esposa deve ter ficado indignada pelo atrevimento do desconhecido, diante da maneira constrangida que ele lhe entrega o celular depois da ligação:
- Desculpe – diz o brutamontes –, mas não entendo mais nada. Sua esposa primeiro ameaçou desligar se eu não dissesse o meu nome e depois ameaçou me processar por calúnia tão baixa! Disse que ontem o senhor esteve com ela à noite inteira e que o senhor nunca foi tão bom marido como naquela noite. Há muito tempo o senhor não servia para nada, era um borra-botas, e, de um tempo para cá, tem se mostrado um verdadeiro Casanova!
Morrendo de ciúmes do clone (você havia combinado para o clone apenas ficar em casa fingindo ser você, ele não deveria se preocupar, pois há muito tempo não faziam mais sexo), você então suspende o almoço e pede desculpas aos policiais que não demoraram a chegar, dizendo tudo não passar de um simples mal-entendido.
Vai tomar satisfações com o clone e ele lhe apresenta um documento do Sindicato dos Clones declarando já haver ingressado na justiça com uma ação de usucapião, de direitos adquiridos, do raio que o parta e do escambau, e, assim que o juiz decretasse a sentença, Você, criatura do céu!, passaria a viver o papel de clone.
Luiz Nicanor
Luiz Nicanor
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