Sabe-se perfeitamente que um dos acontecimentos mais salutares do convívio humano é o aprimoramento e a expansão de contatos com nossos semelhantes. Cultivar uma amizade, aumentar o número de amigos, sempre resulta em saldo positivo, independentemente dos inevitáveis senões e equívocos.
Porém um detalhe despercebido é que os encontros fortuitos, por exemplo, na rua, dentro de um consultório, numa parada de ônibus, dentro de um veículo, seja um navio ou um avião, pode, às vezes, resultar em danos irreparáveis.
Óbvio que focamos as exceções e não a regra. Sabe-se que todos nós, sempre ao encontrar um íntimo, ou mesmo um desconhecido, muitas vezes não ficamos naquele papo aleatório de comentar se vai ou não chover, que este tempo uma hora está frio outra hora está quente, quase sempre somos obrigados a levar casacos e guarda-chuvas, o que, em linguistica, chamamos de linguagem fática. Muitos fazem o contrário, isto é, usam uma linguagem fatídica, ou seja, abrem o seu coração para um estranho capaz de lhes trazerem danos e aborrecimentos. Isto por que, normalmente, as pessoas costumam desabafar, ou seja, compartilhar com alguém algo que as estão produzindo incômodo, algum problema difícil de resolver, algum assunto relacionado à atitude conturbada de familiar, uma possível patologia a lhes acometer, algum imbróglio financeiro aparentemente sem saída. E aí mora o perigo. Se o interlocutor é alguém de boa índole e sempre com o espírito fraterno de ajudar ao próximo, o resultado da conversação pode redundar positivo, ou seja, o estranho, que não tem nada a ver com o peixe, às vezes aponta um estratagema viável, deixando o outro maravilhado, anotando endereço e telefone daquele anjo salvador com promessas de convidá-lo para o churrasco do próximo domingo, ou à festa de aniversário da sogra, ou do filho ou neto caçula que vai fazer um aninho.
Contudo pode ocorrer o contrário. O interlocutor é um vigarista, sempre com aquela cara de solícito, pronto a atacar a próxima vítima. Afinal este é o ganha pão do safado, ele tem de prestar para alguma coisa.
Já ouvi comentários de pessoas saindo frustradas de caixas eletrônicos porque houve um problema com o cartão, não pôde sacar um dinheiro e sai resmungando até ser abordado discretamente por um anjo salvador caído diretamente do céu. O incauto não percebe um possível golpista e conta o seu drama. O outro, discretamente, com todo o tato, se oferece para tentar uma ajuda.
Voltam ao terminal e o estranho descobre que o usuário puxou muito rápido o cartão e não houve leitura. Para encurtar a ladainha, acaba sabendo a senha, ajuda o outro a sacar o dinheiro, mete o cartão no bolso, ao que o outro rindo lhe comenta o engano, o safado também rindo pede mil desculpas e saca do bolso outro cartão e entrega ao otário. Claro que o malandro deve portar diversos tipos de cartões roubados em todos os bolsos. Muito agradecido o incauto guarda o cartão e vai embora todo lampeiro.
Já é tarde quando descobre que está com um cartão desconhecido, e sua conta totalmente zerada, até o valor do cheque especial.
Hoje esse golpe está mais difícil, mas já foi muito usado.
Poderia contar muitos fatos ocorridos comigo, não no sentido de golpes, entretanto mostrando como sempre um fato pendente a nos borbulhar no cérebro acaba assunto das conversações e, na maioria das vezes, terminam em sérios prejuízos.
Conto dois fatos: um deles se refere ao tempo do início de meu casamento. Como vários familiares de minha esposa moram em Novo Hamburgo, passei a frequentar o dentista mais usado por eles, o qual tinha consultório em Esteio.
Normalmente eu tirava uma tarde para levar a esposa e o máximo de filhos possíveis, pois, funcionário público do INSS e da Secretaria da Saúde, precisava fazer a troca de agenda com antecedência.
Numa dessas conversações demoradas, pois eu chegava à uma hora da tarde, saindo praticamente à noite, comentei que os quatro amortecedores do meu carro, um Opala, estavam na hora de serem trocados e eu não conseguia tempo de ir até a concessionária, à época, só em Porto Alegre.
O dentista foi a sua agenda de telefones e ligou para um amigo dele na Sertório que me resolveria o problema pela metade do preço, pois as peças originais eram muito caras e não valia à pena. Saí um pouco mais cedo e resolvi dar um pulo em Porto Alegre.
Chegando lá fui muito bem recebido, o vendedor disse que já sabia de minha amizade com o dentista de Esteio, mas lamentava ter apenas três.
Batemos um papo, comprei os disponíveis e esperei uma nova oportunidade para completar a troca dos amortecedores, pois, uma vez por mês, eu saía diretamente de Osório para Porto Alegre, devido à reunião mensal do INSS, no prédio da Avenida Mario Cinco Paus. Terminada a reunião, fui direto a uma revendedora Chevrolet, perto da Rodoviária, comprar o quarto amortecedor. E aí percebi como o peixe morre pela boca. O grande amigo do meu dentista me cobrou quase o preço dos quatro amortecedores no valor de cada um. Se não fosse a falta do quarto, jamais saberia disso, até hoje achando que fizera um bom negócio. Óbvio que nunca comentei tal fato com o meu amigo dentista – ele estava certo de haver me prestado um grande favor.
Só mais um fato: a família de minha esposa e meus familiares, quase todos, são da Igreja Episcopal, e houve um tempo que os reverendos faziam reuniões semanais nas residências – a nossa era sempre nas sextas-feiras. Como temos o hábito de soltar a língua às vezes para as coisas mais banais, após a reunião inventei de contar que estava fechando o negócio de um bug, pois os meus filhos, ainda pequenos, adoravam ver os pais dos amigos na praia a subirem e descerem os cômoros de areia. Isso lá pelos anos 80.
Foi só eu falar no assunto e o meu amigo Reverendo, do meu telefone mesmo, ligou para um cunhado que negociava bugs, e, certamente, mesmo morando em Santa Catarina, me venderia mais barato. Para encurtar a história, tive um trabalhão para desfazer o negócio já tratado em Porto Alegre, inventar uma desculpa esfarrapada, aguardar o bug de Santa Catarina, com pequena diferença de preço, o qual usei apenas um mês enquanto valia uma licença provisória. Depois, ao tentar emplacar, a polícia me deu o veredicto: era bug feito de automóvel roubado, numeração de motor adulterada e a única saída era eu denunciar o receptador, o qual eu não tinha o endereço e era parente do meu amigo reverendo que não sabia nada das safadezas do cunhado, e o veículo seria recolhido. O inspetor, bastante coerente, achou muito escandaloso um médico ter um carro apreendido, que eu o levasse para casa e o mais breve possível o vendesse como peças para o ferro velho. Realmente fiz o que me disse o policial, agradecendo por não me envolver naquela confusão. O bug foi desmontado e vendido em peças.
Por isso ninguém deve esquecer-se daquele clichê antigo: pela língua se pode provocar até uma guerra.
A crônica me fez lembrar vários e vários episódios um tanto parecidos. É por aí mesmo: pela língua se pode provocar até uma guerra mesmo! Bravo Nicanor, bravo!
ResponderExcluir